terça-feira, 21 de junho de 2011

RUAS DE COIMBRA ACOLHEM FANTASMAS DA SOLIDÃO

Cerca de 200 Sem-abrigo

As costas carregam uma pesada mochila e as mãos seguram um copo de café que apenas servirá para aquecer o estômago, porque o coração, esse, está frio, pequeno, magoado e amargurado demais para se sentir reconfortado com uma bebida quente, ainda para mais nesta noite, carregada de mágoas e de decisões difíceis.

“António” (nome fictício) prepara-se para dormir, pela primeira vez, na rua. 43 anos, sete deles passados em Coimbra (é natural de Águeda), este serralheiro que trabalhou para grandes empresas, em grandes obras, está desempregado há dois meses. Sem trabalho desde então, tem visto a sua vida desmoronar-se.
Um subsídio de desemprego de 300 e poucos euros não chega para uma vida com o mínimo de dignidade, ainda para mais quando 100 euros vão, religiosamente, para a pensão de alimentos do filho (que faz hoje dois anos) de quem fala com os olhos cheios de lágrimas e de orgulho.
Dormir na rua passou a ser solução depois de ter entrado em ruptura com a instituição que o acolheu, mas garante que é «coisa temporária». «Já tenho tudo definido. Vou dormir na Alta, junto à Universidade. Mas é só hoje, amanhã já vou pedir ajuda», garante, despedindo-se, com mais um gole de café e a promessa de que dormir na rua não será um modo de vida.
A história de “António” é apenas uma das muitas histórias de sem-abrigo que contam as ruas de Coimbra. Embora não exista um número oficial, estima-se que sejam cerca de 200 as pessoas que, neste momento, dormem, entre a Alta e a Baixa, em vãos de escadas ou em recantos mais protegidos de edifícios da cidade. O número tem andado estabilizado, mas fenómenos como a imigração, a crise, o desemprego poderão fazer com que aumentem os casos, como admite Maria João Castelo Branco.

Combater a solidão
A vereadora responsável, desde Dezembro de 2010, pela Acção Social do município quis conhecer de perto a realidade destes homens e mulheres que, pelas mais variadas razões, “escolheram” a rua para viver. Por isso, fez parte, esta quarta-feira, da Equipa Móvel de Intervenção Social (EMIS) da autarquia, em funcionamento desde 2004 para acompanhar e integrar os sem-abrigo, através de uma parceria com a Segurança Social e diversas instituições da cidade, no âmbito do Plano Nacional de Apoio para a Inclusão.
Semanalmente, às quartas-feiras, a equipa, composta por um técnico e voluntários, pára em locais estratégicos da cidade para levar um café quente, um bolo ou um salgado, que aconchegam o estômago, e as palavras que confortam o espírito de tantos que, entre outros lamentos, se queixam de solidão.
É por causa dela, da solidão, que Marcelo se desloca muitas vezes à escadaria das Químicas, na Universidade de Coimbra, local que, nos últimos três anos, o amigo Hernâni Dinis, homem vivido, viajado, frequentador da Casa da Cultura, escolheu para chamar “casa”. «Eu sei o que é a solidão, é a coisa que mais me atormenta neste momento», queixa-se, aceitando o copo de leite com café quentinho que a equipa da EMIS transporta num termo azul. Marcelo, músico, tem casa em Santa Clara, mas prefere o desconforto da “tenda” de cobertores do amigo Dinis precisamente porque ali tem «conforto, de amizade».
Uma tenda onde não falta uma banca de cozinha (num banco de pedra) com copos e canecas, uma cadeira, uma espécie de armário (uma palete de madeira) onde se arrumam os sapatos e a companhia de um rádio onde, naquele instante, Madonna canta “La isla bonita”.
É tudo menos bonita a história do principal ocupante deste espaço. Uma vida contada aos solavancos e com muitas mais histórias escondidas por detrás das mágoas que Hernâni Dinis, com 52 anos, evita contar, mas que passam por dependência de álcool, por uma passagem pela prisão por assalto a uma ourivesaria, por uma estadia em França que não correu bem e por um relacionamento conflituoso com os filhos que o impede de estar com os netos que são, mesmo sem o querer demonstrar, a razão das suas lágrimas.

Soluções são difíceis
«Estou aqui para arrumar o sótão e está praticamente arrumado», confessa, em conversa com Maria João Castelo Branco, a quem garante que se tivesse um emprego (é um pedreiro e soldador «de primeira») deixaria a rua. «Isto nem saudades me deixaria», atira. Só que, viver na rua, ser sem-abrigo, já lhe valeu muitas negas de emprego e, claro, mais mágoas a fazerem aumentar a tristeza da sua condição.
«As pessoas vêm aqui, mas não trazem soluções, só trazem opiniões», lamenta Dinis, confessando que estes três anos fizeram desaparecer o homem forte que «já cá existiu dentro». «Não sei onde é que ele está», desabafa. Maria João Castelo Branco promete voltar, talvez com soluções. Para o Hernâni Dinis, e para muitos outros sem-abrigo que, na quarta-feira, aproveitaram as palavras da vereadora (mesmo sem saberem de quem se tratava) para deitar cá para fora os fantasmas associados a muitas noites dormidas ao relento, ao frio, sem conforto e com medo.
Isto embora, como confessa a vereadora, e também João Carlos Gaspar, director do Departamento de Acção Social da autarquia, que acompanha a visita, as soluções sejam muito difíceis para uma população que transporta consigo problemas psicológicos e psiquiátricos, mágoas e angústias e dramas familiares de resolução complicada. Apesar de tudo, «há casos de sucesso», garantem os responsáveis.
Maria João Castelo Branco desdobra a “cábula” com dados sobre o trabalho voluntário de sete anos da equipa da EMIS, mas confessa aos jornalistas que a acompanham, no final de uma “viagem”, que passou pela Avenida Sá da Bandeira, pelo edifício da Caixa Geral de Depósitos, na Baixa, pela Avenida Fernão de Magalhães, ou pelo Parque Verde, que o que sente «é muito mais do que o que está no papel».

por Ana Margalho in Diário de Coimbra,in Diário de Coimbra, 6 de Maio de 2011