terça-feira, 19 de julho de 2011

VIVER NA RUA E DORMIR NUMA CAMA DE SOLIDÃO



VEREADORA DA ACÇÃO SOCIAL ACOMPANHOU EQUIPA DE VOLUNTÁRIOS QUE APOIA OS SEM-ABRIGO DA CIDADE DE COIMBRA. ROTURA COM A FAMÍLIA ESTÁ, QUASE SEMPRE, PRESENTE NAS HISTÓRIAS DE VIDA DAQUELES QUE VÃO PARAR À RUA

Aos 43 anos, sem emprego, casa ou família que o possa apoiar, João (nome fictício) ainda é um homem de esperança. "Amanhã vou pedir ajuda e procurar trabalho", garante, minutos antes de dormir a sua primeira noite na rua. João juntou-se na quarta-feira, pela primeira vez, aos cerca de 200 sem-abrigo que "moram" nos cantos escuros da cidade de Coimbra. Mas assegura que não vem para ficar.
A história de João é mais uma entre tantas outras que carregam os rostos que se escondem na noite de Coimbra. Sempre trabalhou (era serralheiro), tinha um relacionamento estável e um filho, até que a vida lhe caiu num precipício: separou-se e, pouco tempo depois, ficou desempregado. Vive agora com pouco mais de 300 euros de subsídio de desemprego, dos quais 100 são gastos na pensão de alimentos da criança. "Se pudesse dava-lhe mais dinheiro, mas não consigo", lamenta.
A situação de João foi imediatamente anotada pelo psicólogo que acompanha a carrinha da Câmara Municipal que, todas as quartas-feiras percorre as ruas da cidade para levar comida, roupa e, acima de tudo, palavras de conforto aos sem-abrigo. "É feito um rastreio e um estudo de cada caso, para que possamos encontrar um projecto de vida alternativo para cada pessoa.", explica a vereadora da acção social, Maria João Castelo Branco, que anteontem acompanhou o percurso dos voluntários.

TER CASA NÃO É TUDO
Se as histórias de quem vive na rua são muito diferentes entre si, há marcas que são comuns a praticamente todos os sem-abrigo: carregam consigo uma pesada bagagem feita de mágoa e solidão. Hernani Dias guarda todas essas memórias numa tenda de cobertores improvisada, que lhe serve de casa, no átrio das químicas. Há três anos que vive na alta da cidade, ao relento, "a tentar curar muitas coisas que tinha na cabeça". Diz que não é homem de olhar para trás, mas carrega-se-lhe a voz quando fala do filho e dos três netos que ficaram em Espanha.
A família de Hernani é agora João - com quem partilha "a casa" - e Marcelo que, apesar de ter um tecto onde dormir, aparece por ali de vez em quando, para trocar dois dedos de conversa. "Tenho 60 anos e a solidão é o que mais me atormenta", conta, embalado pelo som do rádio a pilhas que anima as noites frias dos três homens.
Não se percebe bem onde termina a realidade e começa a fantasia na história contada por Marcelo - é assim com muitos dos sem-abrigo que, às tantas, vão recriando as suas próprias vidas. Mas parece certo que o homem tem casa e uma reforma. Falta-lhe a companhia. "Gosto de vir aqui e de dormir a noite ao relento. "Vale mais um grande amigo do que um grande amor", relata.
Marcelo é músico e amante de cinema. Hernani gosta de literatura e vai frequentemente à Casa da Cultura exercitar o cérebro.´"É uma fuga", admite. E uma forma de se manter vivo, até porque, acredita, a rua não é o fim. "Há vida para lá disto", diz, recordando o tempo em que lhe reconheciam as "boas mãos" de pedreiro.
É na construção que vai procurando trabalho mas a idade (52 anos) e a etiqueta de sem-abrigo não facilitam a tarefa. Se tivesse um teto e um emprego saía da rua? "Isto nem saudades nenhumas me deixava", sentencia.

NUMEROS PODEM AUMENTAR
"Poderá haver possibilidade de se vir a verificar um acréscimo do número de pessoas que dormem na rua, com novas ou outras realidades que estão associadas à emigração e ao facto de Coimbra ser uma cidade muito solidária", admite a vereadora da acção social da Câmara de Coimbra, Maria João Castelo Branco.
Atualmente há 200 sem abrigo recenseados em Coimbra, mas o numero serve apenas de indicador. Isto, porque este tipo de população é muito volátil. Veja-se o caso de Belmira, 41 anos: é natural do Porto, mas já viveu nas ruas de Lisboa; há dois meses veio para Coimbra e, apesar de agora dormir num quarto arrendado, recorre ao auxílio das equipas de rua.
Coimbra "é uma cidade que auxilia, que acolhe bem e por isso é natural que venham mais" pessoas de fora para a cidade, avalia Maria João Castelo Branco.

Reintegração é "muito difícil"
Desde 2004 que, em parceria com instituições da cidade, o município de Coimbra garante que uma equipa de voluntários circula pela cidade, de segunda a sexta-feira. Param em pontos estratégicos, onde é normal encontrar grupos de sem-abrigo à espera de ajuda e vão estando atentos a novas caras que apareçam nas ruas.
Cândido Lopes é funcionário da qutarquia e voluntário das equipas de rua desde o início. Depois de sete anos de rondas pela cidade, sai à rua "mais à vontade, mas com a mesma dor e tristeza do início". Conhece as histórias de vida de quase todos os sem-abrigo de Coimbra e, apesar de admitir que muitos deles são "resistentes" às ofertas de ajuda, lamenta que não haja mais apoio para estas pessoas. "Devia haver continuidade, dar-lhes ocupação", avalia.
João Carlos Gaspar, director do departamento de acção social da autarquia (que anteontem também acompanhou a equipa de voluntários) conta que é "muito difícil" reintegrar os sem abrigo na sociedade. "Os casos que os levaram a esta vida são muito complicados", justifica. Mas Cândido Lopes já tem algumas histórias de sucesso para contar. E não desiste de continuar a tentar.

Sandra Mesquita Ferreira, in Diário As Beiras, 6 de Maio de 2011